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A queda dos heróis

  • Foto do escritor: Mar
    Mar
  • 12 de jan.
  • 10 min de leitura

Você coloca as pessoas em um pedestal?


Quando somos pequenos podemos ter a impressão de que nossos pais são os seres mais sábios do universo e portadores de todas as respostas e entendedores de todos os porquês. Conforme o tempo passa as experiências individuais vão se divergindo em diversas expressões que podem manter ou desmontar toda uma visão idealizada de conhecimento "sacro" dos pais.

Eu não sei exatamente quando foi que eu tive essa experiência de perceber que meus pais não sabiam tudo. Quando eu era criança, gostava de perguntar sobre como tudo funcionava para todas as pessoas mais velhas do que eu porque imaginava que elas sabiam, mas não lembro com clareza quando fui percebendo que na realidade, muitas vezes, eles simplesmente não sabiam e que era eu quem havia colocado esse poder de sabedoria. Obviamente, nosso eu é altamente influenciado pelo meio e que "os pais" geralmente são colocados pela mídia, pela igreja, por outras coisas, como detentores desse conhecimento sobre como viver a vida que nós, até então meras crianças, simplesmente não sabemos.

Existem muitos fatores envolvidos que aos poucos foram construindo (ou desconstruindo, se preferir) essa visão. Vamos falar um pouquinho deles, lembrando que é apenas minha experiência.


  1. Repetição de Histórias - Desde muito cedo percebia que meus pais não repetiam as histórias exatamente como tinha acontecido. Inicialmente eu não pensava em um modificador de intenção nesse comportamento, era porque eles não lembravam. Depois comecei a perceber que não repetir as histórias exatamente como aconteceram era também uma forma de construção de narrativas. Ou seja, além da possível falta de memória, há também a possibilidade de modificação da própria relação com a realidade ao mudar a forma como contamos as histórias. Para mim, no entanto, não contar as coisas exatamente como aconteceram (as vezes até no tempo cronológico das coisas), era algo que me deixava insegura, como se eu tivesse que interpretar as entrelinhas do que foi dito, ou como se fosse difícil confiar que as coisas realmente aconteciam da forma que diziam que aconteceram.

  2. Professor de Filosofia - Lembro de uma aula que um professor de filosofia de repente disse "É que vocês ainda não perceberam que enquanto vocês eram criados pelos seus pais, seu pais também cresciam". Na verdade ele falou isso com outras palavras, mas o que eu entendi que ele quis dizer foi que a medida em que eu crescia, meus pais também cresciam, porque (ainda que existisse reencarnação), aquelas eram as únicas vidas que eles tiveram como eles mesmos e eles ainda estavam aprendendo a ser eles mesmos, também sem nenhum manual. Obviamente a frase não sedimentou-se imediatamente na minha mente, levou um tempo até que eu tivesse consciência do que eles sabiam e deixavam de saber.

  3. Crescimento Tecnológico - Além da vida no geral, o que me mostrou de forma mais clara a diferença para meus pais foi o grande crescimento tecnológico durante 2000-2020, se você pegar um celular da época de 2000 e um hoje em dia, a diferença é GRITANTE. Então conforme tecnologia avançava, as habilidades dos meus pais perante essas novas tecnologias ficavam a mercê do que era considerado suficiente e que portanto eu (e meu irmão), éramos e somos, as pessoas que arrumavam os celulares, baixávamos jogos e filmes piratas, etc. Quero enfatizar aqui que o fato dos meus pais não serem familiarizados com tecnologia não os coloca como inferiores de forma alguma, apenas evidencia que não sabiam de tudo, até porque, conforme o texto for discorrendo, poderemos perceber que tirar alguém do pedestal é extremamente importante para o amor florescer de fato de forma mais madura e saudável. Então tudo bem não saberem aumentar a fonte do celular ou desativar as notificações de um app, estou aqui pra isso mesmo.

  4. Desculpas? - Dificilmente escutei um pedido de desculpas quando eu era criança, não vou debater muito aqui, mas não era uma falta de discernimento e sim um pedido de desculpa implícito com frases do tipo "venha comer" ou "comprei bolo". Na verdade, as vezes era falta de discernimento, mas também falta de entendimento.

  5. Inversão de Cuidados e Envelhecimento - Esse ponto é sem dúvida complexo, porque carrega em si uma responsabilidade que se revela ao longo do tempo: a de que você também deve cuidar de seus pais e não apenas ser cuidado por eles. A medida em que o tempo passa e a autonomia física diminui, ou novas dores, ou novas condições físicas, você encontra-se em um papel de orientador também. Obviamente, há divergências em relação à maneira como os pais recebem essas orientações porque isso também envolve as próprias observações em relação à si mesmos e suas autopercepções. Alguns podem resistir aos cuidados, outros negarem completamente, outros serem completamente dependentes e alguns até mesmo não precisarem. A forma como você lida com isso também é pessoal, alguns não cuidam, outros cuidam parcialmente, outros sacrificam sua própria vida em prol de oferecer o cuidado para os pais. Não estou em posição de dizer qual a melhor forma de lidar com isso, porque não sei.

  6. Conflitos Familiares - Minha família é grande, muitas pessoas interagindo, conversando, divergindo e convergindo opiniões criavam visões distintas do que cada pessoa representava na família, ora algo positivo, ora algo negativo. Ninguém mantinha uma vista imaculada ou vilanizada de si próprio ou do outro o que facilitava para as crianças também criarem essas contradições (de si e do outro).

  7. Outros Motivos - Contraste com as minhas próprias visões de mundo ideal. Quando eles agiam de forma diferente daquela em que eles diziam ser as certas, ou até mesmo que divergiam das minhas próprias reflexões. Ações impensadas, impulsivas, mentirinhas, etc.


FRUSTRAÇÃO, DOR E DESAMPARO

Além de perceber que eles não sabiam tudo, também tem a frustração em perceber que eles carregam em si traços negativos, ou que não corresponde à ética (que eles mesmo professavam). Que silenciavam-se perante injustiças ou até mesmo as cometiam.

Mas e aí? O que vem depois disso é uma frustração infantil, carregada de desamparo e solidão. Isso porque, se meus pais não são perfeitos, quem é que vai cuidar de mim ou quem é que vai me mostrar o caminho correto para seguir?

Ver os pais como seres humanos, que carregam características humanas positivas e negativas é sem sombra de dúvida algo dolorido, porque coloca em si a responsabilidade de encontrar um caminho que sirva as próprias dinâmicas internas ao invés de tentar validar-se pelas escolhas dos mais velhos. Porém, ainda que fossem perfeitos para o mundo que lhe foi construído, não seriam modelos para o mundo que é vigente, pois as mudanças tanto na construção do indivíduo quanto em um plano coletivo são diferentes das que produziram os meus pais, tornando impossível que sejam modelos para uma vida futura, ainda que tenham experiências valiosíssimas, nas quais vou falar um pouco mais a frente.

E portanto, resumi-los à imperfeitos, ruins, limitados é também uma forma errônea de encarar a situação. A frustração perante à imperfeição dos pais pode vir de várias formas, uma pela negação daquilo que estes representam ou pela reprodução inconsciente daquilo que representam. Essas duas formas, podem ser inteiramente exploradas em outro post, mas de forma geral não são formas metabolizadas d que lida com a frustração de maneira que processa a dor, mas que a nega ou a expressa sem reflexão.

A sensação de desamparo é muito presente quando falamos de ver nossos pais apenas como humanos e não como grandes heróis capazes de todas as façanhas universais. Isso porque nos põe em contato com a nossa própria fragilidade e nos sentimos vulneráveis perante os desafios da vida. A solidão de enfrentar problemas pessoais sem que outras pessoas possam ajudar é interessante porque estamos acostumados na infância a ter solução para nossos problemas ou isso nos lembra das vezes em que nossos problemas infantis não tiveram solução, mas é uma limitação acreditar que a única ajuda que nossos pais nos pode dar é a solução para nossos problemas.

Então, nos sentimos sozinhos, tal como quando éramos uma criança. Então nos sentimos desamparados, tal como quando éramos uma criança. Então nos sentimos frustrados, tal como quando éramos uma criança. E o que fazemos com essa criança sozinha acostumada com soluções (im)perfeitas dos pais, acostumada com o controle, com sua própria ideia de proteção, agora desconfigurada por uma visão mais abrangente da realidade? Lembramos que não estamos só. (Outro post kk) Lembramos que agora somos adultos.

Como lidar com a queda do pedestal sem cair nos extremos da negação ou reprodução de padrões? (Outro post)

Como lidar com a solidão de tomar as próprias decisões e arcar com as consequências? (Outro Post)

Como preservar o amor? (Nesse mesmo post)


RESTAURO - O AMOR ALÉM DA PERFEIÇÃO

Só é possível amar verdadeiramente quando não há um pedestal entre duas pessoas, quando as pessoas podem olhar para si mesmas e para o outro de forma horizontal. (Há, obviamente, a necessidade de relações verticais, principalmente para crianças que precisam de estrutura e proteção, o que digo aqui é em relação à adultos, ou seja, o amor após o crescimento).

Preservar o amor é se libertar da necessidade de controle ou da vontade de ser controlado. É assumir uma responsabilidade e aceitar a dor da imperfeição. Nesse caminho está a aceitação da própria imperfeição, que é dolorido, pois somos chamados de especiais e únicos (e somos, mas não do jeito que somos retratados), mas também é um alívio, pois a partir do momento em que podemos errar, podemos também aprender e crescer verdadeiramente.

Digo tudo isso em um contexto de crescimento não-ideal, porque em um crescimento ideal, a frustração de que os pais não sabem de tudo e o manejo com a imperfeição vem de forma mais gradual. Aqui a diferença está em uma perspectiva de assimilação um pouco mais tardio e por isso mais dolorido também, porque nos obriga a crescer sem as ferramentas mais adequadas (aquelas graduais, na infância) e aprender habilidades com mais idade, implica a desaprender a usar as ferramentas não saudáveis que nos adaptamos a utilizar ao longo da vida. Por isso é um passo a mais.

Preservar o amor, é aceitar ser cuidado na medida em que o outro pode oferecer o cuidado e oferecer o cuidado na medida em que o outro pode aceitá-lo também, mas um pouco mais. É lutar contra a resistência. Como assim?

Aceitar ser cuidado e não controlado. Aceitar ser cuidado um pouquinho a mais daquilo que você gostaria, mas na medida em que o outro pode oferecer. Oferecer cuidado um pouquinho a mais do que o outro pode aceitar, mas na medida em que você pode oferecer.

Nem sempre essas medidas estão alinhadas e tudo bem. A vida é mais complexa do que um post em um blog. Ainda assim, preservar o amor nessas dinâmicas é cultivar o amor e exercer o perdão (como? Ainda vou fazer um post só sobre perdão...).

O ponto principal desse tópico é que o amor pode perdurar para além da imperfeição nos pequenos atos diários de amor. Não é uma questão 8 ou 80, branco ou preto, é uma escala de cinza, um gradiente, uma corda, que busca devagar desfazer os nós e fluir.

Também não é fácil. Mas a partir do momento em que é possível ver os pais de forma horizontal, é aí que nasce a empatia. Um herói que não se sacrifica é um vilão. Um herói que não ajuda é um vilão. Um herói que controla é um vilão. Mas um ser humano, que faz todas essas coisas não é um vilão, é um ser humano em expansão vivendo pela primeira vez. É a partir do recebimento de humanidade que os nossos pais podem finalmente crescer em nossos olhos, é a partir do recebimento do traço de ser humano, que nossas expectativas ficam mais perto daquilo que eles realmente podem oferecer, do amor que eles podem dar, do cuidado e carinho que estão ao alcance deles. E que tudo isso (no meu caso) existe. E que só assim, a relação pode ser construída de forma adulta. Com autonomia e gratidão. Sem controle e com respeito às diferenças.

Quanto à reprodução/negação dos padrões, farei um post só sobre isso, mas de maneira simples, apenas digo que para lidar com isso é necessário bastante autoconsciência e reflexão sobre os motivos que levam a fazer alguma coisa para que possamos fazer nossas escolhas sem ter essas dinâmicas como eixo principal de nossas decisões.

Como lidar com as nossas próprias escolhas? Ter uma clareza do quanto e em que situações podemos errar é um ponto de partida e de qual escolha pode nos levar mais perto do desenvolvimento de nossas potencialidades.

As crianças, tanto quanto os adultos, precisam de estrutura, proteção e segurança. Precisam saber que podem confiar, que podem errar, que podem ser elas mesmas e que um adulto estará ali para apoiá-la, porém sem a responsabilidade de reciprocar essas atitudes, pois aos poucos as aprendem e poderá reproduzi-las.

Aos adultos, amar além da perfeição pode parecer difícil quando você não se sentiu amado quando você não era perfeito. Mas conviver com a dor da imperfeição é apenas um dos passos para amar verdadeiramente, o próximo passo é o alívio. Você também não precisa buscar o pedestal em que coloca as pessoas. Aceitar-se como imperfeito é necessário para amar a imperfeição. E então, logo depois, entende que pensar sobre imperfeição e perfeição limita o desenvolvimento e que o foco deve ser sempre o desenvolvimento.

Ver os pais além da visão infantil de proteção é crescimento, pois você aprende a agir e ajudá-los também. Ver os pais além de uma visão frustrada de desamparo e negligência é crescimento também, pois você percebe em si as lacunas deixadas por eles. É necessário portanto, perceber como essas duas formas se contrastam em uma única pessoa, como as discordâncias formam uma contraposição que por termos uma visão binária tratamos de forma fragmentada, mas que são, na verdade, contradições em uma mesma unidade. E nessa contradição entre certo e errado, entre herói e vilão, entre bom e ruim, entre perfeito e imperfeito, mora alguém que não se encaixa em nenhuma delas: o ser humano.

Por fim, para preservar o amor após a queda dos heróis é primeiro querer preservá-lo (pois você pode não querer), mas depois é perceber que eles nunca deveriam estar naquele lugar, que não é justo com alguém estar em lugar imaculado de destaque sem a possibilidade de falha. É entender que agora, você pode (em certa medida) escolher as próprias soluções e não ser mais subserviente ao que eles lhe diziam para fazer, que tirá-los de um pedestal é dar a liberdade para si mesmo de seguir seu próprio caminho e de dar a eles a liberdade de seguir os caminhos deles também, se os caminhos se cruzam ou não, também vai de cada um.

O amor, nesse caso, é a aceitação, a empatia, o cuidado, o alívio, a dor e o perdão. Amor é liberdade de desenvolvimento.


Observação: nesse post falei apenas de colocar no pedestal pessoas da familia como os pais, mas as vezes essa dinâmica pode acontecer em relacionamentos românticos também, que é um pouco diferente, mas tem algumas similaridades também. Em ambos os casos, tirar do pedestal é extremamente necessário para uma relação saudável. Além disso, não consegui falar de TUDO que eu gostaria sobre essas dinâmicas, mas mesmo assim acredito que tenha reflexões valiosas aí.







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