O mecanismo de controle pelo cuidado
- Mar
- 2 de nov. de 2024
- 11 min de leitura
Atualizado: 7 de dez. de 2024
Quando o cuidado deixa de ser carinho e passa a ser controle?

Acredito que a resposta para essa pergunta está em certa medida propriamente na reação da reação. O que eu quero dizer com isso é justamente em como a pessoa reage à sua reação ao cuidado dela. É possível observar relações de cuidado em muitas dinâmicas interpessoais, como relacionamentos românticos, familiares, de amizades e até em contextos religiosos e não necessariamente essas relações de cuidados estão perpassadas com um mecanismo de controle e alguns elementos são chaves para descobrir se o cuidado que você eventualmente recebe ou doa é ou não um mecanismo de controle disfarçado. Vejamos:
O afeto e o carinho
O afeto é um ponto primordial no cuidado. Sem afeto, qualquer direcionamento, ainda que partindo de uma intencionalidade de cuidado pode ser percebida/vista/tida como uma forma de controlar o outro.

Eu me sentia culpada quando alguém "cuidava" de mim e eu não queria, simplesmente porque no cuidado do outro faltava um aspecto primordial: o afeto. Então, ainda que eu ansiasse por cuidado, o que eu realmente precisava era de afeto. Estar bem alimentada, ter um teto sobre minha cabeça, ter materiais para ir à escola, eram atos de cuidado necessários, mas não são suficientes.
Então essa culpa que eu sentia por não conseguir receber o "cuidado" que me era dado era reflexo da necessidade de afeto e não de um cuidado que controlava minhas ações e tiravam minha autonomia, como o impedimento de fazer algumas escolhas, ou o escárnio às minhas escolhas, seja ele de forma transvestida de piada, ou diretamente.
Certo dia vi um vídeo que um cara falava que a terapeuta dele tinha pedido para ele lembrar de quando foi a primeira vez que ele escolheu um brinquedo e como foi a reação da família dele sobre isso. Não me lembro sobre o vídeo, mas me lembro sobre o que pensei depois disso. Logo depois de assistir, tentei fazer esse mesmo exercício e tentar lembrar quando foi que escolhi algum brinquedo. Tive muitas dificuldades para lembrar de ter escolhido qualquer coisa (sem intervenção), então deixei para lá. Depois de alguns dias lembrei.
Lembro que um dia fui em uma loja 1,99 com meus pais, eu devia ter uns 4 ou 5 anos por aí e eles deixaram cada um de nós escolher um brinquedo da loja, lembro que meu irmão escolheu um beyblade que foi altamente elogiado e eu escolhi um conjunto de letras em EVA. Algo mais ou menos assim ->.

Obviamente minha escolha não foi recebida com entusiasmo, mas com desdém. Por que escolheu esse monte de letras? Você não vai nem brincar com isso. Tem certeza que quer isso?
Claro que eu tinha certeza. (Ainda que subconscientemente e ao longo do tempo, fossem plantadas algumas dúvidas em relação as escolhas que faço, mas isso é papo para outra ocasião).
Levamos. Lembro de brincar sozinha por horas com essas letras até perceber que eu precisava de mais letras para formas frases. Quando contei que eu precisava de mais letras para formar frases, riram. As vezes penso que eles não pensavam, talvez se dessem mais letras uma criança de 4-5 anos, tão interessada em formar frases que poderia ser muito útil para seu desenvolvimento. Obviamente não pensaram.
Depois fui brincar com meu irmão, também estava interessada em entender o que era um beyblade, não era tão interessante quanto as letras, mas ao verem que eu estava querendo brincar com ele, usaram da estratégia do "eu avisei", para diminuir (ou até se justificarem), que as letras de fato não eram tão interessantes.
Vejo que foram muitas oportunidades perdidas de desenvolvimento, mas não posso dizer que tinha uma intencionalidade para me prejudicar, apenas uma ignorância no que era o melhor para mim como uma criança. Imagino que a intenção inicial era dar um presente que eles vissem um sentido, como uma boneca que eu poderia brincar, mas por falta de respeito aos meus interesses, não aproveitaram a oportunidade de brincarem de letras. Então muito provavelmente eles queriam cuidar que escolhessem um bom brinquedo, mas caíram no controle do que eu poderia escolher ou não.
Há outros exemplos de controle disfarçados de cuidado como as escolhas em relação à roupa. Desenvolver um estilo pessoal pra mim é uma coisa complicada. Até hoje raramente compro roupas, mas hoje em dia tenho mais liberdade de escolher o que quero vestir (acredito que a palavra não seja necessariamente mais liberdade), mas tenho menos pensamentos em relação ao que os outros (esses outros são definidos e específicos) vão pensar.
Ainda quero escrever sobre esses "outros" específicos, porque sinto que quando pensamos "o que os outros vão pensar de mim" estamos pensando em certas pessoas ou certas ideias e não genericamente qualquer outro e qualquer pessoa.
O afeto parte de um cuidado não alinhado somente com a sobrevivência, mas sobre a existência, a essência. Uma forma de cuidado em que respeita e cultiva a liberdade do outro de ser quem é a medida em que estimula o outro a ser melhor, mas não a sua própria perspectiva do que é ser melhor, pois dá as ferramentas ao outro para crescer. Orienta-o.
Consentimento

Querer ser cuidado (com afeto), não é algo ruim. Pelo contrário, é muito importante, tanto de uma perspectiva
biológica de sobrevivência, quanto de uma maneira social/pessoal. Acho que o cerne da questão está na fonte do cuidado, isso é, quem nos cuida e no conteúdo/forma, ou seja, como cuida.
Mas de certa forma, o consentimento é muito importante no cuidado. Quando alguém se recusa a ser cuidado de uma forma X, é importante o respeito e se a pessoa ainda necessitar cuidados, ou você ainda acreditar necessário que a pessoa seja cuidada, tente buscar outras maneiras para que a pessoa seja cuidada, ainda temos 25 letras restantes, se não for X jeito.
Há ainda um certo desrespeito à maneira como as pessoas preferem ser cuidadas, ou pelo menos, um descuido da forma de cuidado, fazendo com que algumas pessoas se sintam invadidas ou até invalidadas pelo cuidado.
Por exemplo, uma pessoa com dificuldades de mobilidade, não necessariamente está pedindo ajuda. Oferecer ajuda é importante, mas não é obrigatório que a pessoa a aceite. As vezes prezar pela autonomia do outro também é uma forma de cuidado.
Imagine, uma criança aprendendo a escrever, ao escrever para ela, você não está cuidando que ela entregue a tarefa de casa a tempo, mas está privando-a de um desenvolvimento. Isso não é cuidado, é controle. Há vários exemplos usando crianças, tantos mesmo que poderia até escrever SÓ sobre isso. Quando uma criança quer fazer algo sozinha, é uma oportunidade de crescimento. As crianças precisam de direcionamento, mas é bom também deixá-las explorarem e se desenvolverem, além de terem confiança para arcar com as consequências de suas escolhas ao longo de seu crescimento.
Obviamente há outras manifestações e reações ao cuidado que vão em direção a uma independência prejudicial. Particularmente acredito que há um problema na resistência ao cuidado que tem raízes na crença do que acreditamos merecer. Isso é papo para outra hora, mas vamos falar um pouquinho disso.
O deixar ser cuidado não é fácil, principalmente para aqueles que não estão acostumado com isso, ou que não tem acesso a um tipo de cuidado onde o cuidado é a intenção de fato e não algum benefício ou uma relação de "troca comercial" entre as partes.
E é aí que o consentimento é importante, porque em um contexto em que tudo o que se faz é esperado algo em troca, ser cuidado implica em uma dívida, e então ao invés de se sentir cuidada, a pessoa pode sentir-se culpada.
Mas quando há um consentimento ao ser cuidada, a culpa pode ser elaborada, junto com outras questões, porque ao ser criada em um contexto de cuidado transacional, ela mesma pode trazer em si elementos transacionais ao oferecer ajuda ao próximo.
No consentimento ao cuidado, há o próprio reconhecimento do cuidado e o reconhecimento de si como um ser passível de cuidados.
Os efeitos disso podem ser diversos e não vou explorar hoje. Mas ao longo dos posts vou explorar essa questão de como chegar ao consentimento de ser cuidado. É algo que eu mesma tenho que melhorar em mim, então ainda não sei as respostas para isso.
Medo, cuidado e controle.
Cabelo, roupas, comidas, jeito de andar, jeito de sorrir para foto, jeito de sentar, jeito de deixar o óculos, jeito de cruzar as pernas, jeito de respirar, jeito de mastigar. Qual o critério para estabelecer esses jeitos?

Acredito que os cuidadores que acabam caindo no mecanismo de controle baseiam seu cuidado no medo. Esses medos podem ser diversos, como "o que os outros vão pensar de mim?", lembrando que os outros são sempre definidos , seja como uma ideia que a pessoa acredita em alguma medida ser real, ou ao desejo de impressionar alguém.
Medo de não ser uma boa mãe ou um bom pai, medo de criar uma pessoa que faça X coisa, porque X coisa é ruim.
Ter valores é necessário e importante e é normal e bom que à uma criança seja ensinado valores e costumes importantes e essenciais para a vida na sociedade, mas nessa questão há (entre outras coisas), duas relações a se pensar.
A primeira é a necessidade de questionamento dessas regras.
A segunda é a necessidade de deixar um espaço de inovação para essas regras.
Essas duas coisas são na verdade, parte da mesma necessidade: mudança e desenvolvimento.
Uma criança é uma oportunidade de ao mesmo tempo construir um ser humano com valores, mas desenvolver valores novos em si mesmo. Isso porque na relação com a criança, você é questionado o tempo todo sobre o porquê das coisas, e ao invés de ver isso como uma provocação, seria melhor se víssemos essas coisas como um desafio para questionar nossos próprios porquês.
Mas questionar esses porquês perpassa por alguns medos comuns como a perca da autoridade em relação à criança, o conflito de deixar de acreditar em algo importante depois de uma conversa sobre porquês, ou até mesmo o medo de não saber de algo.
Então quando cuidadores apenas passam as regras transmitidas de geração em geração aos mais novos, eles estão cuidando também de um legado e de uma memória que seria muito dolorido deixar para trás, porque significaria estar desamparado no futuro. Vou ilustrar isso com um exemplo, se eu for ensinada que bater em uma criança não é a solução para uma educação de qualidade, então vou ter que processar que erraram comigo e que eu não fui tratada de maneira que merecia, por isso alguns continuam defendendo o indefensável para que não tenham que lidar com o próprio luto, influenciando diretamente como o meu futuro vai de desdobrar.
Ao perceber a forma mais correta de algo, podemos ter que lidar com o luto de não fazermos o que tinha que ser feito, ou o luto de que não fizeram o certo com a gente. Ambas as situações são dolorosas em sua própria maneira de ser.
Metáforas
Existem algumas metáforas que exploram essa temática do cuidado e do controle. As minhas favoritas são a das flores e a do passarinho.

A primeira não sei se realmente tem a ver com cuidado, talvez com a falta de cuidado. Mas fala que quando alguém gosta de uma flor, não vai arrancá-la, mas cuidar para que permaneça viva e crescendo sempre. Talvez seja melhor receber um vaso de flores do que um buquê 😅
A segunda é que o controle é uma gaiola ao passarinho, ainda que haja cuidado ali, o passarinho não aprende a voar e não se desenvolve, enquanto que o cuidado associado ao afeto é ninho. O amor é ninho (vou escrever disso depois também).
E eu, como fico com tudo isso?
Reconhecer-se como uma pessoa afetuosa é também um desafio após viver em um contexto com pouco afeto, é importante dizer que não vivi em uma casa onde me maltratavam (não intencionalmente, pelo menos), ou onde haviam problemas graves, (talvez seja até uma tentativa de ficar justificando meu passado, um medo de cair em um vitimismo sem realmente ter uma razão direta para tal), mas de certa forma isso contribuiu para que as pessoas me vissem como uma pessoa fria.

Como poderiam me definir como uma pessoa fria, se não cultivaram afeto comigo? Como posso retribuir o que não foi me dado? Há uma responsabilidade embutida em mim de melhorar esses aspectos claro, mas há também um desinteresse de ambas as partes em mudar os rótulos dados há muito tempo.
Obviamente foram afetuosos e hoje consigo reconhecer algumas atitudes de respeito e mais. Mas o foco desse post é justamente o eixo controle-cuidado, então não vejo motivos para vangloriar algumas atitudes da minha família. (Posso falar disso em outro momento também, claro).
E na verdade, descobrir-se uma pessoa amorosa é de certa forma curiosa, porque você tem que conviver com um conflito entre o seu eu do passado, definido como uma pessoa fria pelos outros e seu reconhecimento atual como um ser que gosta de amar e é afetuoso. Mas que também deve aprender a expressar esse afeto ao longo do tempo com as pessoas (e por que é mais fácil mostrar a si mesmo com pessoas novas do que se redefinir com pessoas do passado? Também devo escrever sobre isso em algum momento). Se definir como afetuosa é realmente um desafio, sinto meus dedos hesitarem para escrever que de fato sou assim, porque há uma resistência ao afeto, mas também uma necessidade grande do mesmo, porque se definir é também admitir o que você quer e admitir o que você quer pode ser dificil, e é, mas em forma de protesto ao meu eu resistente, deixo aqui minha manifestação: eu gosto e quero afeto.
Necessito escrever sobre o sentimento de inadequação que simplesmente escrever isso me causa.
Bom, nesse processo de reconhecimento do outro em mim, percebo que tenho dificuldade em aceitar o afeto do outro como algo genuíno, tenho dificuldades em reconhecer as minhas vontades e a bancar minhas decisões sem buscar validação externa. Na verdade esse blog é um exercício contra essa necessidade de validação externa, isso porque quando escrevo estou a cada momento lutando constantemente contra o desejo de agradar quem irá ler e aprendendo a lidar com o desconforto de expor o que eu realmente penso sobre as coisas, sem a pretensão de estar correta. Além de lidar com o conflito entre querer ser vista e não querer ser vista.
Sobre a dificuldade de receber cuidado de outras pessoas, sinto que posso ser um estorvo e estar incomodando, mas nesse processo impeço as pessoas de chegarem até mim de forma mais profunda e genuína. Não é que eu não goste, mas tenho alguns pensamentos em relação a isso: 1. A pessoa quer algo em troca, ou agora estou devendo algo em troca (por causa da relação transacional do cuidado anteriormente falado). 2. Esse cuidado vai acabar logo (acredito que pela relação intermitente e inconstante na qual o cuidado me era oferecido). 3. Uma confusão acerca do motivo. Por que estão fazendo isso comigo?
Além do mesmo acontecer no inverso, quando EU quero cuidar, sinto que a pessoa vai achar ruim, não entender, me achar estranha, etc. Isso são coisas interessantes de explorar futuramente e intervir.
Também percebo alguns padrões que eu repito em minhas relações, também reproduzo alguns mecanismos de controle nas pessoas e falo de forma imperativa as vezes. Também uso o "eu avisei" em momentos que não são cabíveis e tenho dificuldade em aceitar críticas e sugestões, porque me sinto sufocada e controlada.
Mas também percebo algumas diferenças, principalmente no reconhecimento dessas minhas limitações como pessoa e também na vontade de me desfazer dessas limitações, não se trata de buscar uma perfeição, mas de elaborar essas narrativas e redirecionar minha conduta para quem eu realmente quero ser, colocando minha energia no que eu REALMENTE gosto de fazer.
Eu aceito o cuidado que recebi na infância, porque sim fui e sou cuidada, mas me recuso a doar o exato mesmo tipo de cuidado, porque vejo que o afeto e a gentileza é a melhor forma de entregar cuidado. Cuidado tem que ser leve e amoroso, é ser imprescindível em desejo e prescindível em sobrevivência. E é esse tipo de cuidado que eu quero desenvolver na minha vida. Um cuidado que parte da perspectiva do que é importante para o outro e não do que eu acho que seja importante para o outro. Um cuidado que seja pelo querer.
Já estou lá? Claro que não, mas pelo menos tenho um norte para seguir.
Talvez esse tema tenha ficado cheio de lacunas com muitas sementes para outras discussões, acho isso positivo, pois sinto que não esgotei o tema ainda e com certeza vou explorar a questão do controle e cuidado em outras ocasiões.
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