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Senti o cheiro do meu avô. - Conto

  • Foto do escritor: Mar
    Mar
  • 16 de set.
  • 5 min de leitura
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Senti o cheiro do meu avô.

 

Quatro horas da manhã é o horário em que a conexão dos corujas e dos matutinos se entrelaça, seja pela peculiaridade do tempo, ou do silêncio da noite. É propriamente às quatro horas da manhã que estamos justamente no limiar entre o acordar cedo demais e o dormir demasiado tarde. É nesse momento em que os matutinos costumam fazer o café para ver a aurora clareando o horizonte em algumas horas, enquanto os corujas tendem a esquentar o leite e prepará-lo morno com mel para garantir que o sono venha.

Nesse dia em específico, eu era coruja e matutina: coruja porque não havia dormido e matutina pois ao haver desistido de fato de tentar adormecer, preparava meu café. Não sabia ao certo se esperaria o amanhecer ou se conseguiria me encontrar no espaço entre o cobertor e o colchão em alguns instantes. O café provavelmente dificultaria esse processo.

Algumas semanas atrás, aproximadamente um mês antes desse fatídico dia, eu havia ganhado uma belíssima cafeteira italiana. Alumínio brilhante, suficientemente pequena e perfeita para acomodar minhas necessidades particulares de cafeína. Diferente do que possam imaginar, a cafeteira não era octogonal como a maioria das cafeteiras italianas, essa era redonda, fina, delicada, mas seguia o mesmo processo de preparação de um café, tal como todas as cafeteiras italianas tradicionais. A água para o café é despejada na repartição inferior da cafeteira e o pó é colocado em uma cestinha, toda furadinha. Ainda há uma terceira parte, vazia, com uma haste no meio e uma tampa acoplada na parte superior. O calor do fogão esquenta a água, que evapora, sublima, se transforma. E aí o café está pronto. O segredo para o café ficar perfeito é o barulho, um pequeno sussurro sibilante indica que toda a água já evaporou.

E quanto ao açúcar? Fica a gosto do freguês, mas é adicionado bem depois, quando o café já está pronto. A propósito, você não precisa se limitar à açúcar, já inventaram outros adoçantes, porém evite as tâmaras, não combinam muito com café.

O leitor pode imaginar que me perdi nessa explicação ultra detalhada de meu singelo presente, mas a verdade é que os detalhes dessa explicação servem de apoio para o que depois hei de falar.

Voltemos, porém, às quatro da manhã, ou melhor, às onze da noite desse mesmo dia. Cheguei em casa e me livrei de todos meus pertences menos úteis para me manter em casa e desnecessários comparados às suas funções sociais fora do meu ambiente privado. Chaves, mochila, bolsa, moletom, calça e camiseta, joguei-os no chão. Penso em banho. Só um banho frio poderia retirar a máscara, de cílios.

A calça está limpa, posso usar mais uma vez. Guardo-a. Havia uma tensão pelo ar, pelo dia, memórias de notícias boas, outras ruins, todas contrastantes, conflitantes em um só eu. O trabalho estava bom, logo eu receberia visitas em minha casinha, a morte passara pela minha sala de aula, levando consigo um colega, terminei muitos afazeres, tudo isso e mais.

Apanho a camiseta do chão, ela nem mesmo o deveria ter tocado, aproximo o rosto e inicio minha inspeção: estaria limpa? Sinto um cheirinho leve de amaciante. Continuo a farejar, há meu cheiro ali também, jamais saberia explicar como o é. Por fim sinto cheiro de suor. Há de ser lavada. Assim, intento levar a camiseta para a lavanderia.

O apartamento de 26m² não me impede que me distraia no caminho pela cozinha. Fome.

Frigideira quente, manteiga, esquenta.

Quebra a casca. Outra vez.

Faço ovos mexidos.

Esquento a sopa de batata com frango, delícia.

E, nossa, que sede!

Beber água? Não!

Suco? Não tenho!

Café, então.

Sigo todos os passos ritualísticos para fazê-lo e aguardo ansiosamente pelo sussurro da cafeteira. Espero. Sinto cheiro de café. Um leve vapor dançava inebriante acima da tampa, não havia sinal de sussurro de cafeteira. Estava muda? Havia café sendo produzido ali?

Acerquei meu dedo vagarosamente para abrir a tampa e olhar se, havia, de fato, café sendo produzido ali, mas não cheguei a ver nada, pois ao encostar meu dedo ali, acabei por me queimar.

Tamanha foi a dor que senti, ainda assim, menos intensa que o cheiro de café vindo da breve abertura na tampa. Havia café sendo produzido ali.

Tomei por fim o café.

Se por ventura eu vivesse perto de uma igreja, os doze sinos da meia noite teriam soado por volta daquele momento. Oportuna hora para descansar.

Deitei-me e devaneei. Quase dormi, faltou pouquinho para dormir, juro que tentei. Mas não posso evitar que minhas asas de coruja mantenham minhas pálpebras abertas por mais tempo do que eu gostaria.

Quatro horas da manhã.

Olhos abertos.

Promessas quebradas de um descanso rejuvenescedor.

Levantei, não havia ninguém para ser enganado, exceto eu mesma. Tomei banho. A água, em realidade morna, levou as preocupações e as máscaras. A água corria pelo meu corpo, despreocupadamente e sem consciência de vida, em velocidade de chuveiro. Eu, viva, pensava sobre a morte do colega de classe que não conheci. Não o vi antes e decerto tampouco conversei. Desejo que sua alma encontre descanso e paz. E se eu morresse também, o que ficaria? O que fica para todos? Onde eu existiria se não fosse em mim mesma?

Apenas mais um café poderia me tirar desse estado de memento mori e me colocar em memento vivere. A cozinha bagunçada não me impediu de tentar passar outro café. Se eu morresse hoje, falariam da minha cozinha?

Segui, novamente, o ritual da cafeteira italiana. Água, pó, vapor. Fogo. Calor. Por que estaria muda a cafeteira?

Havia café sendo produzido ali?

Meu dedo já sabia antes da minha percepção lógica racionalizar. Eu não poderia tocar a tampa novamente. Meu coração acelerava, na mera recordação da queimadura. Se eu morresse hoje, falariam do meu coração?

Talvez eu pudesse abrir com um guardanapo. Rapidamente peguei um paninho rosa macio de algodão para abrir a tampa. Não era um guardanapo, no entanto, mas minha própria camiseta não tão limpa quanto poderia estar. Que nojinho de mim mesma, e digo nojinho porque era leve, e tão bela é a língua que me expresso eu, ao poder usar o diminutivo como uma maneira de aliviar o peso de palavras tão intensas, se eu morresse hoje, falariam da minha camiseta? Estariam aliviados?

Abri, sem acidentes, com minha camiseta rosa, o compartimento superior, para onde o café é sublimado. Havia café sendo produzido ali. O vapor tornava-se neblina.

De súbito, um sussurro. Um sussurro e cheiro familiar. Senti o cheiro de meu avô. De onde vinha? Seria um sussurro de morte? Se eu morresse hoje, sussurrariam minha morte ou anunciariam a minha falta?

O cheiro de meu avô: café, suor, amaciante, saudade.

Se eu morresse hoje, que cheiro teria eu em sua memória?

 

 

 

 

 

 
 
 

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